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Posts Tagged ‘Editora Objetiva’

Crônicas do Veríssimo retornando ao blog conforme havia prometido!

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O manjar

Os dois estavam comendo sem falar. Só os dois na mesa, e os dois em silêncio. Aí ele fez um comentário. Só por fazer.

– Não existe nada pior do que risoto frio.

Ela só olhou para ele e continuou mastigando.
Daí a pouco disse:

– Bunda caída.
– O quê?
– bunda caída. É pior do que risoto frio.

Novo silêncio. Depois ela completou:

– E risoto frio tem jeito. É só esquentar.

Mais dois ou três minutos. Ele:

– Bunda caída também tem jeito.
– Como?
– Ginástica. Plástica.

Desta vez o silêncio durou até o fim do jantar. Ela levantou e levou os pratos para a cozinha. Depois, como ela estivesse demorando para voltar, ele gritou:

– Matilde!

Ela apareceu na porta da cozinha.

– Que mais? – disse.
– Sobremesa, ué.
– Não. Que mais? Você já criticou meu risoto, já criticou minha bunda… Que mais?
– EU critiquei sua bunda?
– Eu faço plástica. Me dá o dinheiro que eu faço.
– Tidinha!
– Não seja por isso, Vicente.

Ela desapareceu na cozinha. Ele esperou um pouco e depois foi atrás. Ela estava olhando fixo para uma massa disforme dentro de uma fôrma, em cima do balcão.

– O que é isso? – perguntou ele.
– Manjar branco.

A massa era escura. Ele chegou a abrir a boca para falar, mas decidiu ficar quieto.
Depois, na mesa, comeu o manjar e fez “Mmmmm”.
Ela levantou-se da mesa, pegou algumas coisas no banheiro e no quarto e foi para a casa da Enolina, que tinha comprado uma TV de 29 polegadas. Decidida a não voltar mais.
Aguentava tudo, menos a ironia.

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Fim de semana, hora de mais um texto Veríssimo!

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A Verdade

Uma donzela estava um dia sentada à beira de um riacho, deixando a água do riacho passar por entre os seus dedos muito brancos, quando sentiu o seu anel de diamante ser levado pela águas. Temendo o castigo do pai, a donzela contou em casa que fora assaltada por um homem no bosque e que ele arrancava o anel de diamante do seu dedo e a deixara desfalecida sobre um canteiro de margaridas. O pai e os irmãos da donzela foram atrás do assaltante e encontraram um homem dormindo no bosque, e o mataram, mas não encontraram o anel de diamante. E a donzela disse:

– Agora me lembro, não era um homem, eram dois.

E o pai e os irmãos da donzela saíram atrás do segundo homem, e o encontraram, e o mataram, mas ele também não tinha o anel. E a donzela disse:

– Então está com o terceiro!

Pois se lembrara que havia um terceiro assaltante. E o pai e os irmãos da donzela saíram no encalço do terceiro assaltante, e o encontraram no bosque. Mas não o mataram, pois estavam fartos de sangue. E trouxeram o homem para a aldeia, e o revistaram, e encontraram no seu bolso o anel de diamante da donzela, para espanto dela.

– Foi ele que assaltou a donzela, e arrancou o anel de seu dedo, e a deixou desfalecida – gritaram os aldeões – Matem-no!
– Esperem! – gritou o homem, no momento em que passavam a corda da forca pelo seu pescoço. – Eu não roubei o anel. Foi ela que me deu!

E apontou a donzela, diante do escândalo de todos.
O homem contou que estava sentado à beira do riacho, pescando, quando a donzela se aproximou dele e pediu um beijo. Ele deu o beijo. Depois a donzela tirara a roupa e pedira que ele a possuísse, pois queria saber o que era o amor. Mas como era um homem honrado, ele resistira, e dissera que a donzela devia ter paciência, pois conheceria o amor do marido no seu leito de núpcias. Então a donzela lhe oferecera o anel, dizendo: “Já que meus encontos não o seduzem, este anel comprará o seu amor.” E ele sucumbira, pois era pobre, e a necessidade é o algoz da honra.
Todos se viraram contra a donzela e gritaram: “Rameira! Impura! Diaba!” e exigiram seu sacrifício. E o próprio pai da donzela passou a forca para o seu pescoço.
Antes de morrer, a donzela disse para o pescador:

– A sua mentira era maior que a minha. Eles mataram pela minha mentira e vão matar pela sua. Onde está, afinal, a verdade?

O pescador deu de ombros e disse:

– A verdade é que eu achei o anel na barriga de um peixe. Mas quem acreditaria nisso? O pessoal quer violência e sexo, não histórias de pescador.

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\o/ Ótimo conto do Veríssimo!! XD Esse livro é sensacional, não é a toa que ficou entre os mais vendidos por tanto tempo.

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Fim de semana é dia de uma crônica de Luis Fernando Veríssimo:

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Ovo

Agora essa. Descobriram que ovo, afinal, não faz mal. Durante anos, nos aterrorizaram. Ovos eram bombas de colesterol. Não eram apenas desaconselháveis, eram mortais. Você podia calcular em dias o tempo de vida perdido cada vez que comia uma gema.

Cardíacos deviam desviar o olhar se um ovo fosse servido num prato vizinho: ver ovo fazia mal. E agora estão dizendo que foi tudo um engano, o ovo é inofensivo. O ovo é incapaz de matar uma mosca. A próxima notícia será que bacon lima as artérias.

Sei não, mas me devem algum tipo de indenização. Não se renuncia a pouca coisa quando se renuncia ao ovo frito. Dizem que a única coisa melhor do que ovo frito é sexo. A comparação é difícil. Não existe nada no sexo comparável a uma gema deixada intacta em cima do arroz depois que a clara foi comida, esperando o momento de prazer supremo quando o garfo romperá, sim, se desmanchará, e o líquido quente e viscoso correrá e se espalhará pelo arroz como as gazelas douradas entre os lírios de Gileade nos cantares de Salomão, sim, e você levará o arroz à boca e o saboreará até o último grão molhado, sim, e depois ainda limpará o prato com pão. Ou existe e eu é que tenho andado na turma errada. O fato é que quero ser ressarcido de todos os ovos fritos que não comi nestes anos de medo inútil. E os ovos mexidos, e os ovos quentes, e as omeletes babadas, e os toucinhos do céu, e, meu Deus, os fios de ovos. Os fios de ovos que não comi para não morrer dariam várias voltas no globo. Quem os trará de volta? E pensar que cheguei a experimentar ovo artificial, uma pálida paródia de ovo que, esta sim, deve ter me roubado algumas horas de vida a cada garfada infeliz.

Ovo frito na manteiga! O rendado marrom das bordas tostadas da clara, o amarelo provençal da gema… Eu sei, eu sei. Manteiga ainda não foi liberada. Mas é só uma questão de tempo.

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Desta vez, a crônica vem do livro:

Esse livro é excelente, as crônicas dão até água na boca pela maneira que Veríssimo trata a culinária. Vamos com uma crônica curtinha porque ainda tenho uma excelente notícia a publicar sobre o autor e seus livros.

O come e não engorda

Ninguém é mais admirado ou invejado do que o come e não engorda. Você o conhece. É o que come o dobro do que nós comemos e tem metade da circunferência e ainda se queixa:

– Não adianta. Não consigo engordar.

O come e não engorda é meu ídolo. Só não lhe peço autógrafo por inibição. Meu sonho é emagrecer e depois nunca mais engordar, por mais que tente. Quando eu diminuir, quero ser um come e não engorda.

Não se deve confundir o come e não engorda com o enfastiado. Este pertence a outra espécie. Não é humano. Pode até ser melhor do que nós, um aperfeiçoamento, mas não é humano. Afinal, o que une a humanidade é o seu apetite comum. Não é por nada que partilhar da comida com o próximo tem sido um símbolo de concórdia desde as primeiras cavernas. Até hoje as conferências de paz se fazem em volta de uma mesa onde a comida, se não está presente, está implícita. Desconfie do enfastiado. Ele será um agente de outra galáxia ou um poço de perversões, ou as duas coisas. De qualquer maneira, mantenha-o longe das crianças. Quando encontrar alguém na frente de um prato cheio só emparelhando as ervilhas com a ponta da faca, notifique os órgãos de segurança. É um enfastiado e pode ser perigoso. Sempre achei que as pessoas que comem como um passarinho deviam ser caçadas a bodoque. O seu fastio, inclusive, é um escárnio aos que querem comer e não podem.

Já o come e não engorda compartilha do nosso apetite, só não compartilha das conseguências. Ele repete a massa e não tem remorso. Pede mais chantily e sua voz não treme. Molha o pão no café com leite! E ainda se queixa:

– Há 15 anos tenho o mesmo peso.

O come e não engorda só parou de mamar no peito porque proibiram sua mãe de ficar junto no quartel. Quando o come e não engorda nasceu, uma estrela misteriosa apareceu no Guide Michelin de restaurantes para aquele ano. O come e não engorda caminha sobre a sauce bernaise e não afunda. Multiplica os filés de paixe à meunière e os pães de queijo. Por onde o come e não engorda passa, as ovelhas se atiram para trás e pedem “me assa!”. O come e não engorda tem o segredo da Vida e da Morte e, suspeita-se, o telefone da Bruna Lombardi. E ainda se queixa:

 – Tenho que tomar quatro milk-shakes entre as refeições. Dieta.

Dieta! E você ali, de olho arregalado.

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Segundona feriadão!! Já que estou em casa, posso publicar aqui mais um texto do Veríssimo. Continuando o mesmo livro que utilizei ontem.

Sexo e futebol

A dissertação nada-a-ver de hoje é: no que o sexo e o futebol se parecem?

No futebol, como no sexo, as pessoas suam ao mesmo tempo, avançam e recuam, quase sempre vão pelo meio mas também caem para um lado ou para o outro e às vezes há um deslocamento. Nos dois é importantíssimo ter jogo de cintura.

No sexo, como no futebol, muitas vezes acontece um cotovelaço no olho sem querer, ou um desentendimento que acaba em expulsão. Aí um vai para o chuveiro mais cedo.

Dizem que a única diferença entre uma festa de amasso e o cobrança de um escanteio é que na grande área não tem música, porque o agarramento é o mesmo, e no escanteio também tem gente que fica quase sem roupa.

Também dizem que uma das diferenças entre o futebol e o sexo é a diferença entre camiseta e camisinha. Mas a camisinha, como a camiseta, também não distingue, ela tanto pode vestir um craque como um medíocre.

No sexo, como no futebol, você amacia no peito, bota no chão, cadencia, e tem que ter uma explicação pronta na saída para o caso de não der certo.

No futebol, como no sexo, tem gente que se benze antes de entrar e sempre sai ofegante.

No sexo, como no futebol, tem o feijão com arroz, mas também tem o requintado, a firula e o lance de feito. E, claro, o lençol.

No sexo também tem gente que vai direito no calcanhar.

E tanto no sexo quanto no futebol o som que mais se ouve é aquele “uuu”.

No fim, sexo e futebol só são diferentes, mesmo, em duas coisas. No futebol, não pode usar as mãos. E o sexo, graças a Deus, não é organizado pela CBF.

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Terceiro texto do Luis Fernando Veríssimo aqui no blog. Esse texto é do último livro de crônicas que a Editora Objetiva lançou.

Orgias

A idéia que se tem das antigas orgias romanas é a do completo abandono aos instintos, um vale-tudo regido pela espontaneidade e só limitada pela sociedade, ou pela imaginação lúbrica de cada um. Os convites diriam “venham como estiver e saia como puder” e tudo que acontecesse entre o primeiro “evoé” e o último arroto seria obra da improvisão e do acaso. Mas é claro que precisava haver um mínimo de premeditação nas bacanais, nem que fosse para assegurar que no momento em que o imperador estalasse os dedos e pedisse “17 escravas núbias e um cabrito!” não criasse correria e embaraços.

– Essas escravas núbias vêm ou não vêm?
– Estamos providenciando, estamos providenciando!
– E o cabrito?
– Pegamos emprestado da orgia ao lado, mas ele precisa de meia hora para se recuperar!

Pouca gente sabe que existia, na Roma Antiga, até a profissão de organizador de orgias, ou baccanum, profissional muito valorizado, tanto que é daí que vem a palavra “bacana”, mas não digam que fui eu que disse. Os baccanae funcionavam assim como os modernos bufês, que se encarregam de todos os detalhes de uma recepção. Só que as exigências da época, claro, eram um pouco diferentes.

– Precisamos de 2.000 pés para a orgia de sábado.
– Você quer dizer canapés.
– Não, pés mesmo.
– Esse Calígula…

Um bom baccanum sabia organizar uma orgia até os mínimos detalhes e embora não pudesse determinar o comportamento individual dos convidados, entregues aos seus loucos prazeres, fazia o possível para que a festa transcorresse de forma organizada, que nada faltasse e que tudo ocorresse na hora devida. Antes de começar a orgia, um baccanum normalmente reunia sua equipe e o pessoal contratado e dava as últimas instruções.

– Anões besuntados, deste lado. Por favor, tentem manter a máxima discrição até a hora de entrar no salão. Lembre-se de que vocês entram depois da briga de camelos. Antes disso houve a guerra de ovos entre os dois lados da mesa, é possível que o chão ainda esteja escorregadio. E só Deus sabe o que os camelos farão no chão durante a briga, portanto, muito cuidado para não escorregar. Na última orgia, um dos anóes deslizou diretamente para o colo de Flávia Calpúrnia e foi decapitado antes que pudesse se explicar. Bailarinas, onde estão as bailarinas? Ah, aí estão vocês. Vocês entrarão dentro dos bois assados. Não se preocupem, serão costuradas dentro dos bois depois de assados, salvo alguma última ordem em contrário. No momento em que que os bois forem abertos, saiam dançando, e sem cara feia. Obrigado. Escravas núbias: façam o que fizerem, por favor não irritem o cabrito! Vocês têm só 15 minutos para o número, e quando fica irritado o cabrito não consegue se concentrar. Deixa ver. Falta alguma coisa? garçons, mostrem as mãos. Muito limpas! Quero ver essas mãos sujas. Sujas! Muito bem. Todos a postos e esperem o gongo.

Quando se diz que o Brasil está parecendo uma orgia, não se está sendo exato. De certa forma isso aqui sempre foi uma orgia, uma simpática convivência de apetites mais ou menos desenfreados, mais ou menos safados. O que mudou é que não parece haver mais a menor coerência no deboche. Os anões besuntados entram e saem à hora que querem, a Flávia Calpúrnia pula no pescoço do cabrito e o arrasta para um canto, e vá tentar conseguir um garçom para trazer o leitão caramelado. Quer dizer, orgia está certo. Mas um mínimo de organização!

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